[ficção] Não liguei para dizer alô


Sem título

Pela quarta ou quinta vez o celular dava ocupado. Pedro discava com tanta força, que os números nas teclas já tinham atingido a mesma palidez que havia no seu rosto, antes de ele se trancar correndo no quarto com o litro de Coca que sobrou. Todas as tentativas de Pedro contatar sua mãe no meio dessa madrugava acabavam naquela pulsação cardíaca do telefone, prolongando na linha o barulho que já estremecia seu peito.

Não era a primeira vez que ficava sozinho em casa. Isso acontecia quando ele chegava cedo da escola, ou quando não tinha aula, ou ainda, quando ele ficava doente, com uma febre que, na maioria dos casos, tinha como prognóstico o longo sobrenome do professor de matemática. Em nenhuma dessas ocasiões, porém, a casa tinha ficado desconfortável e vazia demais para ser chamada de lar. Até agora.

A campainha quebrou a madrugada outra vez. A cada toque, Pedro tremia tanto quanto Coca-Cola com mentos. De tanto pavor, dava para sentir o telefone gelado escorregando por entre os dedos moles, enquanto ele amassava o celular e a garrafa de refrigerante, tentando garantir a si mesmo que tudo ia ficar bem. Mas pulso após pulso, do outro lado da porta, a campainha continuava em um ritmo frenético, que, no silêncio da casa, ia ecoando cada vez mais alto, amplificando-se ao se juntar ao som dos outros pulsos desesperados do telefone e do coração do garoto.

Ligar para a polícia e ouvir o tio delegado tirar sarro dele não era uma opção. Sem confiar na suposta arma que carregava nas mãos, Pedro trocou a plasticidade da garrafa de Coca pela solidez do troféu de melhor jogador da liga, aquele que ficava ao lado da foto apagada do pai, na prateleira do alto, acima de qualquer um com menos de 1,80 metro e muita vocação pra bola. A última vez que tinha sentido essa efervescência subindo no peito foi quando o treinador garantiu que depois daquele gol de falta, em algum lugar do ginásio haveria um olheiro abrindo uma vaga no Palmeiras. Ele, então, não pensou outra vez e tocou a bola, com a mesma sutileza com que mais tarde estaria espancando os botões do telefone, discando o número que agora já ocupava toda a tela de registro de chamadas do seu celular.

Alô, mãe?

A ligação ficou muda por um segundo, como de repente tudo fora da casa, até que, do outro lado da linha, ele ouviu aquela voz feminina com a esperança de um gol aos 45 do segundo tempo:

No momento, o número que você ligou está fora de área ou indisponível. Tente novamente mais tarde.

A mensagem eletrônica o deixou pasmo como sombra de gol perdido aos 45 do segundo tempo. Pedro se sentindo ainda mais inofensivo do que seus 12 anos consentiam parecia distante dos minutos de glória que gravados em seu troféu. Se pelo menos seu pai estivesse ali.

Alô, mãe?

Oi, Pedro. O que

Onde você tá? Por que você não atende o celular? Faz horas que to tentando te ligar e não consigo e

Calma, filho, a rede está baixa e eu estava

Mas eu

Filho, eu te falei que não precisa esperar eu chegar, porque o treinador fala demais. E, além disso, você sabe que esses ônibus de viagem sempre atrasam, né?

O que Pedro não sabia era se realmente queria passar o segundo tempo da sua vida correndo atrás de uma bola mais do que atrás de outros sonhos, como entrar numa banda e rasgar a garganta cantando rock. No início, o futebol foi a alternativa que sua mãe encontrou para Pedro não pegar mais pneus que o quadriciclo parado na garagem. Depois de uns anos e vários gols, todo mundo encheu a bola de Pedro garantindo que o hino do Brasil, no gramado, ia ser a melhor música que ele cantaria em toda a sua vida. Como atacante da seleção, claro.

Mãe

Você ficou preocupado com a reunião, né?

Mãe, eu

Pode ficar calmo que o treinador e eu conversamos com o presidente do time e você nem vai acreditar!

Preciso te contar uma coisa. É urgente!

Filho, é urgente mesmo? Qualquer coisa, a gente conversa quando eu chegar em casa, tá bom? A rede está baixa e eu não estou conseguindo te ouvir direito.

Mãe, eu

O som da campainha ia subindo as escadas. Mas a mãe, como de costume, parecia não escutar nada do que ele dizia. Com a cabeça meio vazia para pensar em alguma coisa, e meio cheia para não pensar em nada, Pedro não ouviu quando a campainha, de repente, parou, e o celular em suas mãos começou a tremer. Sentindo a sola do tênis grudando no chão, só então, Pedro olhou para baixo e viu que a garrafa agora estava vazia como a bateria do seu celular antes que ele pudesse terminar:

Mãe, te amo, mas não quero mais jogar bola.

 

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um aglomerado de adjetivos ambulante.

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